Inversão de marcha
A questão da inversão de marcha e o liberalismo dialéctico.
Tenho para mim que a diferença essencial entre Portugal e o Reino Unido se pode afunilar na questão da manobra de inversão de marcha.
Certamente já grande parte da maioria (pouco mais de metade portanto) dos portugueses, já viu, ou pelo menos viu fotografias das férias dos amigos no facebook, ou viu videos no youtube, com cenas de trânsito no Oriente ou no Hemisfério Sul, onde reina a criatividade e sentido práctico rodoviários.
Qualquer pessoa que veja estes documentos diários da condição Humana reconhece imediatamente o que é por definição, a liberdade individual.
Em Portugal, o sentido de humor da Brigada de Trânsito, mais ainda que a própria lei, não permite devaneios rodoviário’ liberais.
Eu cresci em Portugal nos anos 80, e lembro-me do terror de ir de férias pelos IP’s do nosso país sabendo que a BT andava (e anda) escondida por detrás de um arbusto ou esquina qualquer com a sua “pistola radar”.
Um individuo na Rússia que tem de ir de A para B de motocicleta, com um frigorífico e três filhos, não tem de perder tempo com estas considerações legais, e logo tem mais tempo mental para si e para os seus.
Um exemplar pai de família português vai a suar frio até ao Algarve porque a sogra sempre veio e a criança tem de ir ao colo da tia lá atrás.
A Grã Bretanha está algures no meio disto, se a Rússia ou a Guiné Equatorial pecam por deficit de democracia administrativa, confiam no bom senso dos seus cidadãos, e na sorte porque não, para o melhor fluxo da sua sociedade rodoviária. A questão aqui é que a Rússia ou a Guiné Equatorial nunca foram democracias, o Reino Unido é em essência uma democracia liberal e Portugal não sei.
No Portugal urbano, a manobra de inversão de marcha é normalmente acompanhada por um familiar diálogo/monólogo, mais ou menos obsceno, quase sempre irritado: Merda, era ali!
Isto porque, qualquer que seja a solução, não vai ser simples. Virar à esquerda, novamente à esquerda, dois quarteirões para trás, esquerda, e esquerda outra vez. Se juntarmos o fatalismo nacional, a primeira à esquerda é sentido proibido, acrescentando mais uns quarteirões à inicial fórmula, mais obscenidades e tensão alta.
Em Inglaterra, na Rússia e na Guiné Equatorial, a inversão de marcha acontece se tem de acontecer, onde tem de acontecer. Não se gasta tempo e gasolina a dar meia volta à cidade porque isso não beneficia ninguém nem o ambiente. São raros os traços contínuos e são raros os acidentes causados por excesso de inversão de marcha.
O senso comum nacional não se dá ao luxo do civismo, vai haver gente que passa à frente de outros pacientes em fila; outros que dão a volta porque genuinamente se enganaram; outros ,únicos, desculpáveis porque têm matricula estrangeira. Quando um desses espertos atropela aquele traço contínuo, o pai que até estava a ouvir o que a filha dizia no banco de trás, tem um episódio de nervos e convulsões abafando o que a participativa criança contava, com buzinadelas e referências menos afectivas. A criança, rapidamente aprende uma valiosa lição e uma série de palavras novas, meio caminho para tirar a carta.
Como dizia Miguel Sousa Tavares, Portugal está em guerra civil nas estradas. O policiamento que impomos aos outros no trânsito, e mais ainda, o sofrimento, porque estamos em permanente tensão para não deixar ninguém ser mais esperto que os outros, obrigam a que as nossas estradas sejam altamente condicionadas e menos prácticas, porque nós simplesmente não nos sabemos comportar. Se a nossa indignação, e sobretudo energia, fosse canalizada para o Bem, não deixávamos passar as barbaridades a que somos sujeitos por centenas de incompetentes que nos dirigem, esses sim, merecem a ira e a buzina, o tomate e a guilhotina.
Há em Inglaterra a mesma impaciência que há em Portugal, mas há outra coisa que é o sentido de fluência e iniciativa pragmática que se sobrepõe. A irritação raramente passa do obsceno murmúrio para a buzinadela. Os condutores não ganham úlceras e a vida continua.
Eu responsabilizo directamente a mediocridade da classe política portuguesa pelas mortes na estrada, pelos acidentes, pelos "toques", pelo preço dos seguros, pelas crianças que crescem a achar que é normal guiar assim. As pessoas não andam bem, aquilo tem de sair por algum lado, o povo era sereno porque andava a pé ou de burro, agora tem tudo carro, não podemos bater nuns, batemos uns nos outros.
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