O meu pai, impecável pessoa que já vive há algum tempo, perguntou-me aqui há algum tempo, se eu estava a tomar conta da minha reforma. A pergunta apanhou-me de surpresa como uma constipação que já se sabe aí vem, claro que já andava a "chocar" uma pergunta dessas,mas só quando aparece a febre é que se pensa nisso a sério. Improvisando uma resposta que já tinha ensaiado tantas vezes no banho só para mim disse: sou freelancer, esses mimos não são para pessoas que trabalham randomly por conta própria - no fundo no fundo, por conta D'outrem mas entregues aos seus próprios dispositivos.
O meu pai, a quem isso diz pouco, repetiu a pergunta como se eu estivesse na minha primeira aula de filosofia a inventar uma resposta para a definição de "senso comum". A verdade, como foi nessa primeira aula, é que eu não fazia a mínima ideia do que responder adequadamente, quando a única coisa que eu podia dizer honestamente seria: não sei.
Como se eu fosse o seu único aluno nesse fatídico dia que resolveu aparecer na sala, o meu pai insistiu, e eu precisei, por ambos, elaborar o meu raciocínio.
Comecei pelo princípio, contando que quando ainda estava em Portugal a trabalhar nos tempos universitários, a recibos verdes como muitos - obrigado dr. soares, a segurança social ou taxa social única, mais o IRS, tornavam trabalhar, quase senão apenas, uma despesa mais do que qualquer outra coisa. Havia um mínimo mensal de segurança social para quem estivesse inscrito que era muitas vezes tanto ou pelo menos metade do que se recebia. Juntando o IRS de quem só a Igreja, e quem pode pagar, escapa, seria melhor que tivesse ficado quieto.
7 ou 8 anos disto, biscates durante a universidade e primeiros trabalhos no universo da cultura, não me fizeram nunca parar a pensar que um dia talvez não me pudesse mexer para trabalhar, mas ainda estivesse vivo para pagar contas, porque nunca parecia sobrar dinheiro para esses delírios.
Saí de Portugal sem pensar muito, na 2a geração contemporânea de portugueses a vir para Londres em 2007, quando ainda não havia portugueses em hackney que se vissem. Tive uma bolsa privada inglesa - obrigado Gulbenkian mas fica pra próxima, o que me permitiu não pedir um empréstimo para estudar, e portanto não ficar anos endividado. Os meus amigos em Lisboa por esta altura contraiam empréstimos para comprar carros novos porque mesmo a ganhar miseravelmente, a casa dos pais tem uma renda barata, pensão completa com roupa de cama incluída.
Não tenho dívidas, o que seria de pensar, é uma coisa positiva, tirando que não é, os bancos gostam de pessoas que devam dinheiro, para lhes emprestarem mais dinheiro. O meu pai entretanto aborrecia-se com os meus méritos baratos.
O meu primeiro cheque (literalmente) quando comecei a trabalhar em Londres, foi de £3257.50. Eu, que estava habituado a viver com pouco mais de £700 mês da bolsa, pensei que era rico, e como todos os novos ricos, esbanjei em álcool, mulheres, jogo, drogas e rockn'roll. Foi assim nos próximos meses, estava pela primeira vez em muito tempo, a gozar poder fazer o que me apetecia. Devo notar que para para ganhar esse primeiro cheque trabalhei 271 horas em 4 semanas, work hard play hard.
O meu pai, senhor de uma lógica difícil de abater, disse no seu tom paternalista que a posição lhe aufere, que eu tinha chegado, na melhor das hipóteses -palavras suas, à metade da minha vida, e que daqui para a frente, seria sempre a descer mesmo que eu dissesse para mim que estava num plateau. Tinha eu acabado de fazer 35 anos, o pai estava a fazer de antropólogo intervencionista.
Desde que presto atenção ao que o meu pai me diz, tinha eu acabado de nascer, que oiço o meu pai dizer que talvez vá ficar sem trabalho "que não sabia como ia ser". Normalmente este discurso vinha depois do PSD ganhar as eleições e os cortes no estado serem noticia. O meu pai, como muita gente da geração nascida em 50, cresceu a ser chateado pelo seu cabelo comprido e gostos musicais, foi para a guerra e voltou, arranjou um trabalho na máquina estatal e com altos e baixos lá tem estado, chateado nestes dias porque acha que vai bater a bota na sua secretaria por causa dos contínuos avanços da idade de reforma.
Passados 8 anos em Inglaterra, continuo sem pensar em reforma, porque para pensar em reforma tenho de trabalhar e pouco mais, "vítima" assumida que sou, de tudo à minha volta que me estimula. Acho que devo estar sozinho neste sentimento, falo em modo de desabafo e não quero mesmo palmadinhas nas costas, obrigado na mesma.
"Não percas tempo" dizia-me alguém outro dia num género Paulo Coelho. "O que quer isso dizer?", perguntei para mim enquanto abanava a cabeça naquele movimento afirmativo tentando tranquilizar a minha interlocutora.
Reforma: não sei.